quarta-feira, 5 de outubro de 2011

DESCONFORTO

Tito Damazo

Ficou entre curioso e surpreso.

Havia a pressa dos clientes a empurrá-lo para as gavetas, os arquivos, o fichário geral. De modo que escanteou, para depois, o envelope circundado de verde e amarelo e entregou-se ao trabalho.

Mãos e olhos na mecânica tarefa de atender os clientes. A cabeça, no entanto, também ia para o canto da escrivaninha, indagando da missiva. Era a resistência da incompreensão. Afinal, jamais estivera em Minas. Parentes seus lá não havia. Nenhum amigo. E a carta acusando nome e endereço corretos.

Deu uma escapadinha e novamente colheu-a da mesa. E novamente buscou no nome remetente uma imagem conhecida. Positivamente, a correspondência não era para ele. Decidira pela devolução.

Intrigava-o, porém, a constatação de que o nome ali sobrescrito, não havia dúvida, era o seu. E a rua, o número, o nome do banco. Como atribuir tudo a uma coincidência? Havia pessoas de nomes iguais, bem o sabia. Ele mesmo conhecia um cliente de nome exatamente igual ao de um seu amigo. E eles nem se conheciam.

Afinal, por que não abrir logo, constatar o equívoco e efetuar a devolução com respeitosas desculpas? Pois tudo dizia ser para ele a correspondência. Se o nome do remetente não lhe parecia familiar de imediato, poderia perfeitamente atribuir ao esquecimento das atribulações. As mudanças, o tempo de ausências. Sim, melhor recorrer ao conteúdo para que tudo ficasse de vez esclarecido.

A forte sensação de que violava uma correspondência, à medida que constatasse nada lhe dizer respeito, impedira-o de ir adiante. Todavia, já havia rasgado a aba sobressalente do envelope. Restava romper tudo de vez. O processo de violação já estava marcado.

Não. Não conseguia ir mais adiante. Isso lhe seria insuportável. Melhor, então, atirar a carta ao cesto de lixo e silenciar. Deixar que real destinatário e remetente acabassem se desentendendo com os Correios. Isso não era incomum. Ficaria, assim, com a consciência menos atormentada.

A vida, o banco, os compromissos múltiplos. A carta incomodativa havia sido, pois, completamente atirada ao lixo do esquecimento. Pegava-o agora, como ao mundo, ao País, uma onda de pavor quase incontrolável. Ações terroristas surdiam de súbito, usando os mais impensáveis meios de extermínio.

Tudo. Os dois mais famosos e sedutores arranha-céus trucidados, cada qual por um Boeing. Súbita bomba arrasando metrô. Fogo em ônibus. Queima de banca de revista. Homem-bomba explodindo em feira. E o que lhe reacendeu o caso da carta: cartas-bomba. O cara, entre curioso e ansioso, mal lê o remetente, abre o invólucro e... tudo se acaba.

Intenso calafrio e descompasso cardíaco só em pensar. Chegara a iniciar a abertura da carta! Ah! salvara-o o sentimento, o respeito à inviolabilidade, a que, agora, se sentia imensamente grato. Por alguns momentos ficou estendido no sofá, feliz, sorrindo aliviado. Sentia-se gratificado.

Assim espreguiçado, a cabeça recapitulando os fatos trouxe a reflexão, cujo avivado sentido imediatamente também o enrubescera de vergonha. Que estúpido! Quem era ele, senão um comum, anônimo bancário, que trabalhava de manhã à noitinha, esforçando-se para ser um funcionário exemplar, não contrariando os superiores e sempre na expectativa de uma promoção... Como então haveria de receber uma carta-bomba?!

O súbito riso incontido não era somente de escárnio. Achava que também de despeito. Um bobo e estúpido despeito de não estar à altura de receber uma carta-bomba.
 

Tito Damazo é doutor em Letras e escritor, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e da AAL (Academia Araçatubense de Letras).

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