terça-feira, 20 de setembro de 2011

Literatura Jeca


Hélio Consolaro

Muitos afirmam que apenas uma literatura existe, a boa literatura. Com tal afirmação, rompem-se fronteiras, anula a existência da literatura regional, não se faz diferença entre faixas etárias de leitores. Para quem pensa assim, não há literatura infanto-juvenil. A criança pode começar por Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Com tal introdução, pretendemos chegar à literatura interiorana, Jeca, principalmente do Estado de São Paulo. Como nosso estado é o mais cosmopolita da federação, não criamos o mecanismo de defesa cultural. Aliás, sempre desprezamos nosso rico caipirismo: “coisa de Jeca Tatu”.   

Os paulistas visitam Ouro Preto, por exemplo, berço da Independência do Brasil, mas ignoram Itu, onde foi articulada a República. Admiramos as manifestações folclóricas mineiras e nordestinas, não prestigiamos as nossas.

O Governo do Estado de São Paulo, 2004, publicou resultado de pesquisa do projeto desenvolvido pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária sob o título de “Terra Paulista: histórias, arte, costumes”. Essa mesma obra foi editada para jovens em 10 volumes e todas as escolas estaduais receberam a coleção. Dentre os volumes, há um intitulado “A Literatura do Interior”, do professor Jorge Miguel Marinho.

“Estudar a produção literária do interior paulista significa, em certa medida, examinar aspectos do difícil relacionamento entre o campo e a cidade. Isso porque tudo o que se legitimou como arte letrada, desde a contribuição dos poetas românticos, em meados século 19, até dos integrantes da Semana de Arte Moderna de 1922, passou pelo crivo da capital, sob o olhar desconfiado da crítica e da história literária. A literatura do interior paulista submeteu-se permanentemente a essa desconfiança quando citada, pois o mais comum foi o silêncio como registro da sua condenação” (prefácio do volume).

A literatura do interior paulista passa quase despercebida pela “História concisa da literatura brasileira”, do professor Alfredo Boi. O professor Antônio Cândido, crítico literário,  afirmou que “caipira” é “um modo de ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial”. Para o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, quem constrói a imagem do caboclo, estereotipada, é “uma gente letrada e urbana”.

No começo do século 19, em seus relatos de viagem pela província de São Paulo, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire apresenta uma visão depreciativa do matuto: “Essa gente embrutecida pela ignorância, pela ociosidade, pelo isolamento em que se acha de seus semelhantes e provavelmente pelo gozo de prazeres prematuros, não pensa em nada, apenas vegeta como as árvores”. Esse desdém ao homem do campo paulista se manifestou bem antes de Monteiro Lobato, quando criou o personagem Jeca: raquítico, preguiçoso.

Observando o nosso lado, a literatura local e regional ora insiste em conceber o matuto como um ser arcaico, supersticioso, de gestos e costumes grosseiros, ora confere o caboclo uma inteligência “escavada da terra”.

Nós, escritores do interior, precisamos avivar essa discussão, porque ela é nossa. Não devemos nos sentir “vira-latas” diante de escritores de capital. Nosso sistema literário (escritor +leitor +editora) existe. Essa literatura marginalizada faz parte da cultura caipira... Como escreveu Gabriel Zaid, intelectual mexicano, que a literatura maior de cada país se constrói com os livros de pequenas tiragens, não apenas de best-sellers. 

Como caipira letrado hoje tem internet, o isolamento causado pela regionalização está por ruir. Agora precisamos delimitar ainda mais as fronteiras para que a cultura global não destrua a local, inclusive a nossa literatura Jeca.

Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da União Brasileira de Escritores.

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