terça-feira, 20 de setembro de 2011

Letra de música

Hélio Consolaro*

Tem 17 anos e fugiu de casa / Às 7 horas da manhã no dia errado / Levou na bolsa umas / mentiras pra contar / Deixou pra trás os pais e namorado / Um passo sem pensar// Um outro dia, um outro lugar/ Pelo caminho, garrafas e cigarros/ Se amanhã por diversão/ Roubava carros/ Era Ana Paula, agora é Natasha/ Usa salto 15 e saia de borracha / Um passo sem pensar / Um outro dia, um outro lugar// O mundo vai acabar/ E ela só quer dançar/ O mundo vai acabar/ E ela só quer dançar, dançar, dançar/ Pneus de carro cantam Tchuru, tchuru, tchuru/ Tchururu...// Tem 7 vidas, mas ninguém sabe de nada/ Carteira falsa com identidade adulterada/ O vento sopra enquanto ela morde/ Desaparece antes que alguém acorde/ Um passo sem pensar// Um outro dia, um outro lugar/ Cabelo verde, tatuagem no pescoço/ Um rosto novo, um corpo feito pro pecado/ A vida é bela, o paraíso é um comprimido/Qualquer balaco ilegal ou proibido.( Natasha, Capital Inicial)

/ - divisão de verso - // - divisão de estrofe

O material da Aula de Redação da apostila, ensino médio, só trazia letras da MPB, mas bem antigas. Para alguns intelectuais, a Música Popular Brasileira parou em Caetano, Gil e Chico Buarque. Não consideram Adriana Calcanhoto, Marisa Monte, Zeca Baleiro e muitos outros valores.

Os alunos me questionaram:

- Professor, vamos estudar letras de músicas mais atuais!

Aceitei o desafio. E devolvi à classe a palavra:

- Sugiram a música. Qual?

E chegaram a uma sugestão:

- Natasha, Capital Inicial.

Alguém se prontificou em trazer o CD, eu preparei o estudo durante a semana.

O poema conta a narrativa de uma menina classe média que fugiu de casa, caiu no mundo, enveredou-se para o mundo marginal. A letra julga a atitude da menina, 17 anos, pois estava muito cedo para tal aventura: “Às 7 horas da manhã no dia errado”. E dá uma lição de moral, repetida: “Um passo sem pensar”. Talvez seja o exercício da autocensura do compositor.

A letra também entende a adolescente, pois o refrão repete a visão epicurista da vida: Ana Paula, que adotara o pseudônimo de Natasha, queria apenas viver: o mundo vai acabar mesmo, então, ela só quer dançar.

Há na letra uma metáfora com um clichê: morde e assopra. O vento soprou a favor dela, lhe dando uma família constituída e era amada: tinha “Pai” e “namorado”. Essas duas figuras formam uma metonímia do padrão de vida da garota, mas ela “mordia”, dando sopa para o azar. Vivia o perigo. Desafiava o destino.

Aliás, podemos dizer que toda a letra é construída de metonímias. O poeta vai fornecendo índices de mergulho cada vez mais profundo de Ana Paula no mundo do crime, se tornando cada vez mais Natasha: garrafas, cigarros, roubava carros, identidade adulterada, tatuagem no pescoço, corpo feito pro pecado, o paraíso é um comprimido, balaco ilegal.

Fiz várias perguntas para que os alunos descobrissem a riqueza da letra, como foi bem construída. A letra também sugeriu várias discussões extraliterárias.

A conclusão do estudo foi o espanto de uma aluna:

- Professor, eu adoro essa música, mas eu não sabia que ela trazia essa mensagem tão bonita, fosse tão bem escrita, fazendo inveja a bons escritores. Eu cantava, curtia a música, mas não entendia ela muito bem.

A letra, se bem construída, tão fácil na leitura rasa, resiste a uma leitura mais profunda, escarafunchada. Os alunos aprenderam que precisavam prestar mais atenção nas letras das músicas que ouviam e cantavam, não podiam fazer apenas uma leitura rápida e intuitiva.

*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da União Brasileira de Escritores.

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