terça-feira, 20 de setembro de 2011

Galinhagem


Tito Damazo

            O poleiro ganhou imagem de palanque. A galinha gorda abriu as asas pedindo ordem e silêncio. Que parassem aqueles cacarejos. Sejamos democráticas. A imposição é arma dos fracos.
        Declarou estarem abertas as conversações. Pois bem, minhas amigas de ninho (na verdade, há muito não participava do sistema de produção). Embora desconfiadas daquela inédita e súbita concessão, as poedeiras decidiram apresentar suas reivindicações. Depois de algum tempo de rumorejos diversos, uma delas recebera a incumbência de relatar o conjunto de problemas e dificuldades sentidos bem como apontar as soluções não só desejáveis como necessárias.
            -- Senhora capataz. As poedeiras desta granja têm discutido longa e exaustivamente que não é mais possível continuar suportando as crônicas adversidades vividas. A vida confinada neste recinto é uma afronta à nossa dignidade. Isto é uma prisão não a quem deve, mas a quem trabalha honesta e devidamente. É notório e inegável que, além disso, nenhum espaço temos fora do ninho a que se acoplam comedouro e bebedouro. Mal respiramos. A noite, bem imprescindível para nossa condição de ave, nos é negada. Somos torturadas por essa iluminação que nos atordoa, nos causa insônia, que nos estressa. Cabe-nos tão somente pôr ovos, pôr ovos, pôr ovos! Nossos mínimos direitos são completamente coibidos. Não nos permitem nenhum tipo de pastagem. Hábito praticamente congênito da espécie. A história evidencia nossos antepassados como galináceos livres pelos quintais, pastos e até mesmo matos. Nossas coirmãs ditas caipiras continuam podendo exercer esse direito. Caçam o alimento complementar ao milho matinal e da tardinha, quando depois vão para o galinheiro curtir o justo sono que a noite lhes concede. Também elas continuam tendo o direito ao ritual do sexo em que os galos perseguem-nas incansavelmente até possuí-las. O direito de chocar, ter seus pintinhos, amorosamente acolhê-los e agasalhá-los como mães extremosas e furiosas com quem se atrever incomodá-los.
            Finda a exposição da líder, a galinha gorda, durante algum tempo, ficou bicorando o corpo penado. Ao mesmo tempo mirava a postura e reação daquelas galinhas que esperavam agora sua manifestação. Por fim, disse-lhes que aquelas verdades eram impossíveis de se conseguir, pois elas tocavam as razões do senhor daquilo tudo. Conviria repensarem. Afinal, apesar de tudo, tinham do bom e do melhor. Eram muitíssimo bem tratadas. Tinham como único afazer pôr seus ovos. Aliás, algo próprio da sua condição de ser, o que naturalmente faziam, sem despender grandes esforços.
            -- Não botaremos!
            -- Leve tudo, sem tirar nem pôr ao senhor granjeiro!
            -- Mas vocês estão radicalizando. Insisto: botar os ovos é uma imposição da nossa natureza. Independe de nosso desejo. O senhor granjeiro sabe muito bem disto.
            -- Quebraremos tudo! Daqui não sai um ovo vivo. A menos que...
            -- Recebamos licença para a maternidade.
            -- Para a sexualidade.
            -- Direito de liberdade!
            -- Abaixo o arbítrio!
            -- Psiu. Vocês estão se excedendo, olhem o corte, ponderou a gorda galinha.
            Essa observação arrefeceu por algum tempo os ânimos. Mas depois, os rumorejos de indignação se restabeleceram:
            -- Somos inflexíveis.
            A gorda galinha resolveu que então daria andamento às determinações das colegas. Que não a acusassem depois de culpada pelo que pudesse acontecer.
            Na manhã seguinte, o granjeiro ordenou a um garoto que levasse a galinha gorda de presente para a irmã recém adoecida. Uma boa e substanciosa canja de galinha seria benéfica ao restabelecimento de sua saúde.

Tito Damazo é doutor em Letras e escritor, membro da União Brasileira de Escritores – UBE e da Academia Araçatubense de Letras – AAL.

Nenhum comentário:

Postar um comentário